QUARESMA
(almas penadas e crendices)
Elen de Moraes Kochman
Quem nasce nas cidadezinhas do interior do Brasil, cresce ouvindo, invariavelmente, histórias que passam dos pais para os filhos, sem que se saiba explicar como surgiram, se são verdadeiras ou não, e na Quaresma elas tomam maiores proporções, porque é a época preferida dos contadores nos assombrarem com seus causos de almas do outro mundo, superstições e outras crendices. Contadas nas rodas de amigos, nos bares, em torno das fogueiras acesas em noites frias, em reuniões de família, entre vizinhos ou nas cozinhas das antigas fazendas, enquanto se aproveita o calorzinho do fogão a lenha, para a maioria são digeridas como bom divertimento, para outros, principalmente crianças, causam terror e influenciam, às vezes, a sua vida adulta.
Ouvi muitas dessas historinhas na minha infância. Quando ainda pequenina, meus pais mudaram-se do Rio de Janeiro para Iúna, pequena cidade no interior do Estado do Espírito Santo, e fomos morar numa fazenda que pertencera à família paterna. O casarão à beira da estrada, abandonado por ser mal assombrado, diziam, estava lá resistindo ao tempo. Os vizinhos evitavam passar por ali à noite porque tinham a impressão de ouvir pessoas arrastando os pés, ao som do piano, como se dançassem. Contava-se que seu dono, o meu bisavô paterno, nos finais de semana, quando anoitecia, recebia amigos e suas “namoradas” para festinhas à luz dos lampiões, ao som do piano que ele tocava muito bem. Dançavam e bebiam até altas horas. Deixou, ao morrer, ordens expressas proibindo a venda daquele instrumento. E no canto da sala o encontramos ao ocuparmos a casa. Foram semanas terríveis ouvindo os “tais fantasmas” dançando madrugada adentro, até que meu avô materno decidiu desvendar o mistério: destruiu o piano ao exterminar os ninhos de ratos que nele encontrou. Se as almas penadas se foram, porque eram ratos ou porque o piano foi destruído, jamais se descobriu. Tempos depois fomos embora dali porque os boatos dos vizinhos sobre pessoas vestidas de branco entrando e saindo da casa, à noite, acabou por minar a nossa resistência. Tornei-me adolescente ouvindo causos de fantasmas vagueando pelos cafezais, mula sem cabeça, etc, e mesmo sem acreditar nessas histórias, desenvolvi uma estranha mania: quando estou sozinha em casa de estranhos ou em hotéis, só consigo dormir se me deitar ao contrário, com a cabeça virada para os pés da cama. E nunca no escuro! A análise ajudou-me a descobrir que era medo de estar ocupando o lugar de alguém que já tivesse morrido. O medo eu perdi. A mania, não.
Há muitas histórias engraçadas pelo nosso Brasilzão, como a do Senhor Zé Magalhães, contada ao repórter Luiz Gustavo, para o jornal Hoje, da TV Globo. O homem em questão, diante de testemunhas, confirmou que ensaiou o próprio velório. Chamou alguns amigos, pagou umas crianças para chorar - que acabaram por rir o tempo todo - entrou num caixão, enfeitaram-no com flores, tiraram fotografias e velaram o “corpo” por algum tempo. Perguntado sobre o que o levara a essa atitude, respondeu que queria saber como organizar e ver o resultado de como seria o seu funeral.
Outro “causo” conhecido e interessante é o do Padroeiro de Costa Rica, cidade do Estado do Mato Grosso do Sul, que se destaca por suas belezas naturais, mas ficou famosa pela historia do seu Santo fujão. Conta-se que o major Martim Gabriel de Melo Taques e sua esposa fugiram da guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, nos meados de 1800 e se instalaram no Mato grosso, levando consigo uma imagem do Senhor Bom Jesus. Fundaram a Fazenda Santo Antonio dos dois córregos e nela construíram uma capela para a Imagem. Após a morte do major, os moradores continuaram cuidando da capela. Muitos anos depois, construíram outra maior na cidade, porque a antiga caia de tão velha. No dia seguinte à mudança da imagem, constataram que o Senhor Bom Jesus havia voltado, à noite, para a antiga capela, lá na fazenda. Trouxeram-no de volta e ele tornou a fugir. Quantas vezes o buscavam, tantas ele fugia. Assombrados, os fieis não vendo outra saída, cortaram os pés do Santo e dizem que ele nunca mais fugiu. Hoje em dia essas histórias já não têm a mesma graça nem nos assustam ou arrepiam, porque são contadas pela televisão, em sites da internet, com reportagens mostrando em vídeos os locais dos acontecimentos, desmistificando-as. Além do mais, perderam o mistério - a conivência das sombras da noite, da luz mortiça dos lampiões e lamparinas - que era o que as faziam medonhas e eloquentes, pois atiçavam a nossa percepção e nos estimulavam a imaginar criaturas tétricas, como exigia nossa fantasia. |
"Somethings in the rain" - playlist da série
segunda-feira, 2 de abril de 2012
QUARESMA (almas penadas e crendices) - Elen de Moraes Kochman
Assinar:
Postar comentários (Atom)
2 comentários:
Oi Elen, cheguei aqui para mais uma vez ler teu artigo - "Quaresma, almas penadas e crendices", e dar-te meus parabéns, mas, um poema teu me chamou a atenção: "Lua confidente".... a lua, suas fases nossas crendices... principalmente se é noite de lua cheia. ´
Escuta-me lua cheia
(‘Alma penada’)
No meu desejo, 'crendices',
aqui lendo a lua cheia,
a lembrar de quantas vezes,
essa mesma lua cheia,
fora minha confidente...
Sabemos que ela nunca
responderá nada... Nada,
Nem sei mesmo, com certeza
se escuta nossos lamentos...
Ontem desejei ter asas,
(noite mágica no céu),
voar ao encontro do meu sonho...
E me pergunto amor, como?
– Lua! Desvenda-me esse véu –!
Reinadi Rodrigues Sampaio
Cruz das Almas, 03/04/2012 > 10h34min.
Oi querida amiga,
obg pela visita e pelo comentário.
Quanto ao teu poema da saudade/amiga/luacheia/ ficou muito bonito e sugestivo, pelo seu amor tão distante...Só os loucamente apaixonados e os poetas se apaixonam pela lua...ou a fazem confidente! E ela cada vez mais misteriosa e faceira!
Beijos.
Postar um comentário