Mudez
Que desgraça, meu Deus! Tenho a Ilíada aberta à minha frente, Tenho a memória cheia de poemas, Tenho os versos que fiz, E todo o santo dia me rasguei À procura não sei De que palavra, síntese ou imagem! Desço dentro de mim, olho a paisagem, Analiso o que sou, penso o que vejo, E sempre o mesmo trágico desejo De dar outra expressão ao que foi dito! Sempre a mesma vontade de gritar, Embora de antemão a duvidar Da exactidão e força desse grito. Mudo, mesmo se falo, e mudo ainda Na voz dos outros, todo eu me afogo Neste mar de silêncio, íntima noite Sem madrugada. Silêncio de criança que ficasse Toda a vida criança, E nunca conseguisse semelhança Entre o pavor e o pranto que chorasse. Súplica E que nele posso navegar sem rumo, Não respondas Às urgentes perguntas Que te fiz. Deixa-me ser feliz Assim, Já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto O nosso amor Durou. Mas o tempo passou, Há calmaria... Não perturbes a paz que me foi dada. Ouvir de novo a tua voz seria Matar a sede com água salgada. É contra mim que luto
É contra mim que luto.
Não tenho outro inimigo.
O que penso, o que sinto,
o que digo, e o que faço, é que pede castigo e desespera a lança no meu braço.
Absurda aliança de
criança e adulto, o que sou é um insulto ao que não sou; e combato esse vulto que à traição me invadiu e me ocupou.
Infeliz com loucura e sem loucura,
peço à vida outra vida, outra aventura, outro incerto destino.
Não me dou por vencido,
nem convencido. E agrido em mim o homem e o menino.
Maceração
Nenhum deles te merece. São frutos acres que não apetece Comer. Falta-lhes génio, o sol que amadurece O que sabe nascer.
Cospe de tédio e nojo
Em cada imagem que te desfigura. Nega esta rima impura Que responde de ouvido. Denuncia estas sílabas contadas, Vestígios digitais do evadido Que deixa atrás de si as impressões marcadas.
E corta-me de vez as asas que me deste.
Mandaste-me voar; E eu tinha um corpo inteiro a recusar Esse ímpeto celeste.
Livro de Horas
eu, pecador, me confesso de ser assim como sou. Me confesso o bom e o mau que vão ao leme da nau nesta deriva em que vou. Me confesso possesso de virtudes teologais, que são três, e dos pecados mortais, que são sete, quando a terra não repete que são mais. Me confesso o dono das minhas horas. O das facadas cegas e raivosas, e o das ternuras lúcidas e mansas. E de ser de qualquer modo andanças do mesmo todo. Me confesso de ser charco e luar de charco, à mistura. De ser a corda do arco que atira setas acima e abaixo da minha altura. Me confesso de ser tudo que possa nascer em mim. De ter raízes no chão desta minha condição. Me confesso de Abel e de Caim. Me confesso de ser Homem. De ser o anjo caído do tal céu que Deus governa; De ser o monstro saído do buraco mais fundo da caverna. Me confesso de ser eu. Eu, tal e qual como vim para dizer que sou eu aqui, diante de mim! Écloga Temos tão pouco tempo! Dentro de nós germina O desencanto, Mas os tojos são tenros ao nascer... E enquanto O rebanho rumina, Podemo-nos amar sem padecer.
Sim, é fugaz esta ternura aflita,
Mas não há outra com mais duração. A eternidade É o sono que, maciço, no caixão Aguarda o desenlace deste dia Todo acordado, todo claridade, Breve aceno do sol que o alumia Desfecho Gastei-as a negar-te... (Só a negar-te eu pude combater O terror de te ver Em toda a parte.)
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado A divina presença impertinente Do teu vulto calado E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão. Fechado num ouriço de recusas, Soltei a voz, arma que tu não usas, Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia... Agora somos dois obstinados, mudos e malogrados, Que apenas vão a par na teimosia. Ave da esperança Sou a ave da esperança. Pássaro triste que na luz do sol Aquece as alegrias do futuro, O tempo que há-de vir sem este muro De silêncio e negrura A cercá-lo de medo e de espessura Maciça e tumular; O tempo que há-de vir - esse desejo Com asas, primavera e liberdade; Tempo que ninguém há-de Corromper Com palavras de amor, que são a morte Antes de se morrer.
Tempo
Tempo — definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te Ao coração pulsátil dum poema! Era o devir eterno em harmonia. Mas foges das vogais, como a frescura Da tinta com que escrevo. Fica apenas a tua negra sombra: — O passado, Amargura maior, fotografada. Tempo... E não haver nada, Ninguém, Uma alma penada Que estrangule a ampulheta duma vez! Que realize o crime e a perfeição De cortar aquele fio movediço De areia Que nenhum tecelão É capaz de tecer na sua teia!
Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'
Quase um Poema de Amor
Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor. E é o que eu sei fazer com mais delicadeza! A nossa natureza Lusitana Tem essa humana Graça Feiticeira De tornar de cristal A mais sentimental E baça Bebedeira. Mas ou seja que vou envelhecendo E ninguém me deseje apaixonado, Ou que a antiga paixão Me mantenha calado O coração Num íntimo pudor, — Há muito tempo já que não escrevo
um poema de amor.
Miguel Torga, in 'Diário V'
Da Realidade
Que renda fez a tarde no jardim,
Que há cedros que parecem de enxoval? Como é difícil ver o natural Quando a hora não quer! Ah! não digas que não ao que os teus olhos Colham nos dias de irrealidade. Tudo então é verdade, Toda a rama parece Um tecido que tece A eternidade.Miguel Torga, in 'Nihil Sibi'
Frustração
Foi bonito
O meu sonho de amor. Floriram em redor Todos os campos em pousio. Um sol de Abril brilhou em pleno estio, Lavado e promissor. Só que não houve frutos Dessa primavera. A vida disse que era Tarde demais. E que as paixões tardias São ironias Dos deuses desleais. Miguel Torga, in 'Diário XV'
Esperança
Tantas formas revestes, e nenhuma
Me satisfaz! Vens às vezes no amor, e quase te acredito. Mas todo o amor é um grito Desesperado Que apenas ouve o eco... Peco Por absurdo humano: Quero não sei que cálice profano Cheio de um vinho herético e sagrado. Miguel Torga, in 'Penas do Purgatório'
Identidade
Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento. E em vez de rimas, uso As consonâncias que há no sofrimento. Universal e aberto, o meu instinto acode A todo o coração que se debate aflito. E luta como sabe e como pode: Dá beleza e sentido a cada grito. Mas como as inscrições nas penedias Têm maior duração, Gasto as horas e os dias A endurecer a forma da emoção. Miguel Torga, in 'Penas do Purgatório'
Amor
A jovem deusa passa
Com véus discretos sobre a virgindade; Olha e não olha, como a mocidade; E um jovem deus pressente aquela graça. Depois, a vide do desejo enlaça Numa só volta a dupla divindade; E os jovens deuses abrem-se à verdade, Sedentos de beber na mesma taça. É um vinho amargo que lhes cresta a boca; Um condão vago que os desperta e toca De humana e dolorosa consciência. E abraçam-se de novo, já sem asas. Homens apenas. Vivos como brasas, A queimar o que resta da inocência.
Miguel Torga, in 'Libertação'
Aos Poetas
Somos nós
As humanas cigarras. Nós, Desde o tempo de Esopo conhecidos... Nós, Preguiçosos insectos perseguidos. Somos nós os ridículos comparsas Da fábula burguesa da formiga. Nós, a tribo faminta de ciganos Que se abriga Ao luar. Nós, que nunca passamos, A passar... Somos nós, e só nós podemos ter Asas sonoras. Asas que em certas horas Palpitam. Asas que morrem, mas que ressuscitam Da sepultura. E que da planura Da seara Erguem a um campo de maior altura A mão que só altura semeara. Por isso a vós, Poetas, eu levanto A taça fraternal deste meu canto, E bebo em vossa honra o doce vinho Da amizade e da paz. Vinho que não é meu, Mas sim do mosto que a beleza traz. E vos digo e conjuro que canteis. Que sejais menestréis Duma gesta de amor universal. Duma epopeia que não tenha reis, Mas homens de tamanho natural. Homens de toda a terra sem fronteiras. De todos os feitios e maneiras, Da cor que o sol lhes deu à flor da pele. Crias de Adão e Eva verdadeiras. Homens da torre de Babel. Homens do dia-a-dia Que levantem paredes de ilusão. Homens de pés no chão, Que se calcem de sonho e de poesia Pela graça infantil da vossa mão. Miguel Torga, in 'Odes'
ORGASMO
Corpo de virgem que não amo ainda! Fauno das fragas e dos horizontes, Sonho contigo sem te conhecer… Sonho contigo nua, a pertencer Ao silêncio devasso e à solidão! Num pesadelo, vejo amanhecer O sol e o vento no teu coração! E é um ciúme de Otelo que me rói! Só eu não posso acarinhar a sombra Do teu rosto velado! Só eu vivo afastado Dos teus encantos! E são tantos E tais! Que eu não posso, paisagem, Esperar mais! Miguel Torga, Diário V Outono
Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.
|
Biografia de Miguel Torga
Miguel Torga nasceu em 1907 em S.w Martinho de Anta, concelho de Sabrosa Trás os Montes, aldeia onde cresceu e que o havia de marcar para toda a vida. De nome Adolfo Correia da Rocha, adoptou o pseudónimo de Miguel Torga(torga é o nome dado à urze campestre que sobrevive nas fragas das montanhas, com raízes muito duras infiltradas por entre as rochas). Depois de uma breve estadia no Porto, frequentou apenas por um ano, o seminário em Lamego. Em 1920 partiu para o Brasil, onde foi recebido na fazenda de um tio. Regressou depois a Portugal acompanhado do tio, que se prontificou a custear lhe os estudos em Coimbra. Em apenas três anos fez o curso do liceu, matriculando se a seguir na Faculdade de Medicina, onde terminou o curso em 1933. Exerceu a profissão na terra natal, passou por Miranda do Corvo, mas foi em Coimbra que alguns anos mais tarde acabou por se fixar. "Atordoado na meninice e escravizado na adolescência, só agora podia renascer ao pé de cada rebento, correr a par de cada ribeiro, voar ao lado de cada ave", pouco sociável, mitigou a solidão rodeando se de livros. Foi logo após ter entrado para a universidade, que deu início à sua obra literária, com os livros "Ansiedade" e "Rampa". Só em 1936 passou a usar o pseudónimo que o havia de imortalizar. Desde a década de trinta até 1944, escreveu uma obra vasta e marcante, em poesia, prosa e teatro. Não oferecia livros a ninguém, não dava autógrafos ou dedicatórias, para que o leitor fosse livre ao julgar o texto. Foi várias vezes candidato a Prémio Nobel da Literatura. Ganhou vários prémios entre eles o Grande Prémio Internacional de Poesia e em 1985 o Prémio Camões. Com ideias que se demarcavam do salazarismo, foi preso e pensou em sair do país, mas não o fez por se sentir preso à pátria e a Trás os Montes, longe do qual seria um "cadáver a respirar". A sua poesia reflecte as apreensões, esperanças e angústias do seu tempo. Nos volumes do seu Diário, em prosa e em verso, encontramos crítica social, apontamentos de paisagem, esboço de contos, apreciações culturais e também magníficos textos da mais alta poesia. Toda a sua obra, embora multifacetada, é a expressão de um indivíduo vibrante e enternecido pelas criaturas, tremendamente ligado à sua terra natal. Faleceu em 1995. Em 1996 foi fundado o Círculo Cultural Miguel Torga.
Bibliografia:
Poesia: "Ansiedade" (1928), "Rampa" (1930), "Tributo" (1931), "Abismo" (1932), "O outro Livro de Job" (1936), "Lamentação" (1943), "Libertação" (1944), "Odes" (1946), "Nihil Sibi" (1948), "Cântico do Homem" (1950), "Alguns Poemas Ibéricos" (1952), "Penas do Purgatório" (1954), "Orfeu Rebelde" (1958), "Câmara Ardente" (1962), "Poemas Ibéricos" (1965). Ficção: "Pão Ázimo" (1931), "A Terceira Voz" (1934), "A Criação do Mundo" (5 volumes, 1937 1938 1939 1974 1981), "Bichos" (contos, 1940), "Contos da Montanha" (1941), "Rua" (1942), "O Senhor Ventura" (1943), "Novos Contos da Montanha" (1944), "Vindima" (romance, 1945), "Pedras Lavradas" (contos, 1951), "Traço de União" (1955), "Fogo Preso" (1976). Teatro: "Terra Firme, Mar" (1941), "O Paraíso" (1949), "Sinfonia" (poema dramático)(1947). Literatura autobiográfica: "Diário" (16 volumes, 1941 1993), "Portugal" (1950).
Nenhum comentário:
Postar um comentário