"Somethings in the rain" - playlist da série

domingo, 16 de dezembro de 2012

FELIZ NATAL - ( Noite Feliz Noite - Elen de Moraes Kochman)








Ser ou não ser - Hamlet - (William Shakespeare)

 
Ser ou não ser...

William Shakespeare


"Hamlet"


Ser ou não ser, eis a questão.
Será mais nobre em espírito viver
Sofrendo os golpes e as frechadas da afrontosa sorte
Ou armas tomar contra um mar de penas.
Dar-lhes um fim: morrer, dormir...
Só isso e, por tal sono, dizer que acabaram
Penas do coração e os milhões de choques naturais
Herdados com a carne? Será final
A desejar ardentemente... Morrer, dormir;
Dormir, sonhar talvez... Mas há um contra,
Pois nesse mortal sonho outros podem vir,
Libertos já do mortal abraço da vida...
Deve ser um intervalo... É o respeito
Que de tal longa vida faz calamidade
Pois quem pode suportar do tempo azorrague
e chufas,
Os erros do tirano, ultrajes do orgulho,
As angústias de amor desprezado, a lei tardia,
A insolência das repartições e o coice destinado
Pelos inúteis aos meritórios pacientes?
Para quê se pode aquietar-se, acomodar-se,
Com um simples punhal? Quem suportará,
Suando e resmungando,vida de fadigas
Senão quem teme o horror de qualquer coisa após a morte,
País desconhecido, a descobrir, cujas fronteiras
Não há quem volte a atravessar e nos intriga
E nos faz continuar a suportar os nossos males
Em vez de fugir para outros que desconhecemos?...
Assim a todos nos faz covardes nossa consciência,
Assim o grito natural do ânimo mais resoluto
Se afoga na pálida sombra do pensar
E as empresas de mor peso e alto fim,
Tal vendo mudam o seu rumor errando
E nada conseguindo! Sossega agora...
Ofélia gentil? Ninfa, em tuas orações
Sejam sempre lembrados meus pecados.

Tradução de José Blanc de Portugal,
Editorial Presença, 3ª. ed., 1997)

WIILLIAM SHAKESPEARE
(1564-1613)
 

 Ser ou não ser - eis a questão.

 

Será mais nobre sofrer na alma pedradas e flechadas do destino feroz, ou pegar-me em armas contra o mar de angústias - e, combatendo-o, dar-lhe fim?
Morrer; dormir; Só isso.
E com sono - dizem - extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a que a carne é sujeita; eis uma consumação ardentemente desejável.

Morrer - dormir - dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! Os sonhos que hão de vir no sono da morte quando tivermos escapado ao tumulto vital nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão que dá à desventura uma vida tão longa.

Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo, a afronta do opressor, o desdém do orgulhoso, as pontadas do amor humilhado, as delongas da lei, a prepotência do mando e o achincalhe que o mérito paciente recebe dos inúteis, podendo ele próprio encontrar seu repouso com um simples punhal?

Quem agüentaria fardos gemendo e suando numa vida servil, senão porque o terror de alguma coisa após a morte - o país não descoberto, de cujos confins não voltou jamais nenhum viajante - nos confunde a vontade, nos faz preferir e suportar os males que já temos, a fugirmos para outros que desconhecemos?

E assim a reflexão faz todos nós covardes.
E assim o matiz natural da decisão se transforma no doentio pálido do
pensamento. E empreitadas de vigor e coragem, refletidas demais, saem de seu caminho, perdem o nome de ação.


(Hamlet, Ato III, cena 1)




domingo, 9 de dezembro de 2012

QUARESMA, ALMAS PENADAS E CRENDICES - Elen de Moraes Kochman



Quaresma, almas penadas e crendices


Elen de Moraes Kochman




Quem nasce nas cidadezinhas do interior do Brasil cresce ouvindo, invariavelmente, histórias que passam dos pais para os filhos, sem que se saiba explicar como surgiram, se são verdadeiras ou não e na Quaresma elas tomam maiores proporções, porque é a época preferida dos contadores nos assombrarem com seus causos de almas do outro mundo, superstições e outras crendices. Contadas - nas rodas de amigos, nos bares, em torno das fogueiras acesas em noites frias, em reuniões de família, entre vizinhos ou nas cozinhas das antigas fazendas enquanto se aproveita o calorzinho do fogão a lenha - para a maioria são digeridas como bom divertimento; para outros, principalmente crianças, causam terror e influenciam, muitas vezes, a sua vida adulta.

Ouvi muitas dessas historinhas na minha infância. Quando ainda pequenina, meus pais mudaram-se do Rio de Janeiro para Iúna, pequena cidade no interior do Estado do Espírito Santo, e fomos morar numa fazenda que pertencera à família paterna. O casarão à beira da estrada, abandonado por ser mal assombrado, diziam, estava lá, resistindo ao tempo. Os vizinhos evitavam passar por ali à noite porque tinham a impressão de ouvir pessoas arrastando os pés, ao som do piano, como se dançassem. Contava-se que seu dono -  o meu bisavô Theodoro - nos finais de semana, ao anoitecer, trancava a esposa e os filhos menores em seus quartos e recebia os amigos e suas “namoradas” para festinhas, à luz dos lampiões, ao som do piano que ele tocava muito bem. Dançavam e bebiam até altas horas


Deixou, ao morrer, ordens expressas proibindo a venda daquele instrumento. E no canto da sala o encontramos ao ocuparmos a casa. Foram semanas terríveis ouvindo os “tais fantasmas” dançando madrugada adentro, até que meu avô decidiu desvendar o mistério e destruiu o piano ao exterminar os ninhos de ratos que nele encontrou. Se as almas penadas se foram porque eram ratos ou porque o piano foi destruído, jamais se descobriu. Tempos depois fomos embora dali porque os boatos dos vizinhos sobre pessoas vestidas de branco entrando e saindo da casa, à noite, acabaram  por minar a nossa resistência. 

Tornei-me adolescente ouvindo causos de fantasmas vagueando pelos cafezais, mula sem cabeça,  etc., e mesmo sem acreditar nessas histórias, desenvolvi uma esquisita mania: quando estou sozinha em casa de estranhos ou em hotéis, só consigo dormir se me deitar ao contrário, com a cabeça virada para os pés da cama. E nunca no escuro!  A análise ajudou-me a descobrir que era medo de estar ocupando o lugar de alguém que já tivesse morrido. O medo eu perdi. A mania não.

Há muitas histórias engraçadas pelo nosso Brasilzão, como a do Senhor Zé Magalhães, contada ao repórter Luiz Gustavo, para o jornal Hoje, da TV Globo. O homem em questão, diante de testemunhas, confirmou que ensaiou o próprio velório. Chamou alguns amigos, pagou umas crianças para chorar - que acabaram por rir o tempo todo - entrou num caixão, enfeitaram-no com flores, tiraram fotografias e velaram o “corpo” por algum tempo. Perguntado sobre o que o levara a essa atitude, respondeu que queria saber como organizar e ver o resultado de como seria o seu funeral. 

Outro “causo” conhecido e interessante é o do Padroeiro de Costa Rica, cidade do Estado do Mato Grosso do Sul, que se destaca por suas belezas naturais, mas ficou famosa pela historia do seu Santo fujão. Conta-se que o major Martim Gabriel de Melo Taques e sua esposa fugiram da guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul, nos meados de 1800 e se instalaram no Mato grosso, levando consigo uma imagem do Senhor Bom Jesus. Fundaram a Fazenda Santo Antonio dos dois córregos e nela construíram uma capela para a Imagem. Após a morte do major, os moradores continuaram cuidando da capela. Muitos anos depois, construíram outra maior na cidade, porque a antiga caia de tão velha. No dia seguinte à mudança da imagem, constataram que o Senhor Bom Jesus havia voltado, à noite, para a antiga capela, lá na fazenda. Trouxeram-no de volta e ele tornou a fugir. Quantas vezes o buscavam, tantas ele fugia. Assombrados, os fieis não vendo outra saída, cortaram os pés do Santo e dizem que ele nunca mais fugiu.

Hoje em dia essas histórias já não têm a mesma graça, nem nos assustam ou arrepiam, porque são contadas pela televisão, em sites da internet, com reportagens mostrando em vídeos os locais dos acontecimentos, desmistificando-as.  Além do mais, perderam o mistério, a conivência das sombras da noite, que era o que as faziam medonhas e eloquentes, pois atiçavam a nossa percepção e nos estimulavam a imaginar criaturas tétricas, como exigia nossa fantasia.



O BEIJO DA BORBOLETA - José M. Raposo

 
 
 
O BEIJO DA BORBOLETA

 
 
José M. Raposo
(AoSaborDoVento)


Para minha amiga Elen de Moraes 



 Mais um ano a borboleta voou,
Pisando, muitas vezes, numa flor
Com a mesma graça e com o mesmo amor.
E de voar ela não se cansou.


Em pleno ar seus desenhos traçou,
Emprestando-lhes a vida e a cor,
Como empresta e lhes concede o pintor,
Quando a pintura na tela encerrou.
  


Por vezes, desabrocha tanta flor
Sem que a borboleta as tenha beijado...
Choram infelizes e sentem dor...


Porém, a que a borboleta há tocado,
Há de sentir, para sempre, o calor
Desse beijo... tão louco e apaixonado.  


  




sexta-feira, 30 de novembro de 2012

PÉROLAS DO HUMOR BRASILEIRO - colhidas na net


Pérolas do humor brasileiro
colhidas na net


Quando estamos fora, o Brasil dói na alma;
quando estamos dentro, dói na pele.
Stanislaw Ponte Preta

O uísque é o melhor amigo do homem.
Ele é o cachorro engarrafado. 
Vinícius de Morais

Os homens mentiriam muito menos
se as mulheres fizessem menos perguntas. 
 max Nunes

Das três melhores coisas da vida
a segunda é comer e a terceira é dormir.
Stanislaw Ponte Preta

Junta médica é uma reunião que os médicos
fazem nos últimos momentos de nossa vida,
 para dividir a culpa. 
Jô Soares

Pior do que o fim do mundo,
para mim é o fim do mês.
Zeca Baleiro

O Brasil é feito por nós.
Só falta agora desatar os nós. 
Barão de Itararé

Quem se mata de trabalhar
 merece mesmo morrer. 
Milôr Fernandes

Chega de debate de idéias.
Onde já se viu um político brasileiro
dotado de idéias?  
Diogo Mainardi

Democracia é quando eu mando em você.
Ditadura é quando você manda em mim.  
 Millôr Fernandes

No Brasil, quem tem ética parece anormal.  
 Mario Covas

Não é triste mudar de idéias;
triste é não ter idéias para mudar.  
Barão de Itararé

Comecei uma dieta:
cortei a bebida e as comidas pesadas
e em quatorze dias perdi duas semanas! 
Tim Maia

Ultimamente tenho feito a dieta da sopa...
deu sopa, eu como!!
Claudia Trepichio

Brasil? Fraude explica
Carlito Maia

Era um menino tão mau
 que só se tornou radiologista
 para ver a caveira dos outros.  
Jô Soares 

A prosperidade de alguns homens públicos
do Brasil  é uma prova evidente de que eles
vêm lutando pelo progresso

do nosso subdesenvolvimento.
Stanislaw Ponte Preta

A minha vontade é forte,
 mas a minha disposição de obedecer-lhe é fraca.
Carlos Drumond de Andrade

O Brasil é um país geométrico .....
 tem problemas angulares,
discutidos em mesas redondas,
por um monte de bestas quadradas. 
(sumiram com o autor)

Quem mata o tempo não é assassino,
é suicida!
 Millôr Fernandes


segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O MENSALÃO... (a corrupção, do nosso descobrimento ao mensalão) - Elen de Moraes Kochman




A corrupção,
do nosso descobrimento
ao Mensalão.

O Mensalão e seus 40 ladrões.

Elen de Moraes Kochman


Gosto de pesquisar sobre a contribuição que os portugueses nos deram com sua língua melodiosa, sua culinária, inclusive a bela cor dourada dos mulatos que, como diz o poeta, é criação dos nossos colonizadores. Escrevi algumas vezes sobre o excelente legado da cultura portuguesa, entretanto, como o assunto do momento é a corrupção, interessei-me em saber em que época essa prática foi mais explícita e intensa. Segundo alguns historiadores, a primeira vez que dela se falou foi com a informação do nosso descobrimento. Bom frisar: nem todo português que veio para a colônia e que aqui trabalhou e enriqueceu a exercia; que a corrupção, por ser uma “doença inerente ao ser humano de caráter duvidoso”, é praticada em quase todos os países. O louvor vai para quem a investiga e pune.

São tipos mais comuns de corrupção o tráfico de influência, a extorsão, o suborno (propina) e o nepotismo (nomear parentes). Muitos políticos não se acanham de, publicamente, explicar a nomeação de familiares por desejarem pessoas de “confiança” trabalhando em seus gabinetes, em detrimento de gente melhor preparada e muitas vezes mais competente, para o cargo.
 
O primeiro ato de nepotismo que se tem notícia em terras brasileiras (dizem alguns, embora outros não concordem), foi feito por Pero Vaz de Caminha, num pós-escrito de sua carta ao Rei de Portugal narrando a descoberta do Brasil. Ele pedia a volta do seu genro que vivia em degredo na África: "E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro, o que Dela receberei em muita mercê.Beijo as mãos de Vossa Alteza". (Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500).

Na época da colonização os casos mais comuns de corrupção eram ligados aos funcionários públicos encarregados de fiscalizar o contrabando e outras infrações contra a coroa portuguesa. Ao invés de fazerem o trabalho para o qual eram contratados, acabavam praticando comércio ilegal do pau-brasil, tabaco, ouro, diamante, etc. Esses produtos, que só poderiam ser comercializados com especial autorização do rei, iam parar nas mãos dos contrabandistas e Portugal se esquivava em resolver o problema, porque estava mais interessado em manter os rendimentos da camada aristocrática.

E a corrupção não deixou de existir com a chegada da família Real Portuguesa. Pelo contrário, ao partir de Portugal rumo ao Brasil, D. João VI trouxe em sua comitiva entre 10 e 15 mil pessoas da corte, que passaram a viver à custa do dinheiro público. Muitos conselheiros do Príncipe Regente enriqueceram cobrando propinas dos ricos fazendeiros, confiscando suas casas, etc. e mais tarde, durante o Império, mesmo Dom Pedro I sendo mais estadista do que o seu pai, tinha entre seus amigos pessoas pouco recomendáveis nomeadas para cargos importantes, que mandavam e desmandavam. Já Dom Pedro II, homem culto, apreciador das artes e ciências, mecenas, poliglota, porém sem nenhuma aptidão para governar, fazia vistas grossas para os desmandos no seu governo.

Com a República, pouco ou nada mudou, a não ser o impeachment de Fernando Collor de Mello. Cada Presidente que assumia o poder chegava com a promessa de combater a corrupção e investigar seu antecessor. E foi com a promessa que Luis Inácio Lula da Silva chegou à Presidência. A era Lula (2003-2010) foi marcada por avanços na economia, por melhorias sociais, mas também por grandes escândalos políticos. E o maior e mais famoso foi o do “Mensalão”, cujos participantes atualmente são julgados pelo Supremo tribunal Federal, por corrupção, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha.

Em 2005, decidiu o Deputado Federal e Presidente do PTB, Roberto Jefferson, ao ser acusado de participar do esquema de propinas dos Correios, denunciar a existência de outro esquema que segundo ele, deputados de alguns partidos, inclusive do seu, recebiam dinheiro por mês para votarem projetos de interesse do governo Lula. Jefferson foi cassado e seguiu afirmando a existência do suborno pago aos deputados, que recebeu o nome de “Mensalão”. Ele próprio afirmava ter recebido quatro milhões do PT (partido do governo). Inocentou o Presidente Lula, que se reelegeu em 2006, embora haja comentários de que o Presidente sabia do que se passava nos bastidores do seu governo.

Em 2007, o STF (Supremo Tribunal Federal) acatou a denúncia da Procuradoria Geral da República e abriu processo contra os 40 envolvidos no escândalo do Mensalão. Entre os réus estão José Dirceu, a cúpula do PT daquela época e até um (ex) Bispo da igreja Universal, entre outros, os quais respondem por crime de corrupção passiva e ativa, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, etc.

José Dirceu, ex- ministro da Casa Civil, homem forte do governo Lula, considerado o chefe da quadrilha do Mensalão, foi condenado a 10 anos e 10 meses de cadeia em regime fechado e a pagar multa superior a R$ 600 mil. Todos os passaportes foram recolhidos. Agora é esperar que nenhuma manobra seja feita para impedir que se cumpra a Lei.
 





sábado, 24 de novembro de 2012

ERA UMA VEZ...uma garotoa gorda - Elen de Moraes Kochman





Era uma vez...
uma garota gorda.

Elen de Moraes kochman

Quando se conta uma história, geralmente inicia-se por “era uma vez...”, porém, hoje começo dizendo que “esta é a vez...” da bela desta história!

Desde cedo, Karla pouco se sentiu feliz e com o tempo desistiu de tudo e se escondeu atrás dos quilos de gordura que se apossavam do seu corpo e se acumulavam, à medida que os anos passavam. Sua ansiedade se tornava mórbida. Talvez a historia ficasse mais interessante se eu a fantasiasse com bruxas más e príncipes encantados, mas, ao contrário dos contos, a “princesa” em questão era bem comum, nascida num lar bem estruturado, um bebê esperado e amado ao extremo.  Pode ser que o amor excessivo tenha desencadeado o processo da sua obesidade, uma vez que nada lhe era negado por ser filha única e porque para alguns pais e avós, criança sadia é criança “fofinha”.  Até nos anúncios de TV e revistas não se vê crianças magras (ou não se via).

Por trabalharem, seus pais deixavam-na aos cuidados de uma babá que se encarregava do preparo da sua alimentação e lhe servia refrigerantes, massas, sanduíches e biscoitos, ao invés de uma comida saudável, contrariando as orientações do Pediatra. Os finais de semana se tornavam conflitantes, porque sua mãe não conseguia convencer a filha a comer legumes, verduras, frutas e sucos naturais, uma vez que a menina se acostumara ao paladar das guloseimas.

Cedo resolveram matriculá-la num “jardim de infância” para conviver com outras crianças e ter atividades físicas. A menina descobriu-se diferente ao receber apelidos pejorativos dos coleguinhas e ao ouvir exclamações de espanto, na rua, sobre suas perninhas grossas. Os meninos atormentavam-na bem mais do que as meninas.

Karla criou seu mundo de faz de conta, não permitindo que dele alguém participasse, a não ser uma amiga com quem mantém amizade até hoje e que se tornou sua confidente. Naquele “esconderijo” sentia-se bem. Não se relacionava com as crianças do prédio onde morava, pois nessa época, já aos cuidados da avó materna, primeiro, não tinha permissão para sair e segundo, por ela mesma se sentir desconfortável. Assim foi que desistiu das festinhas próprias da sua idade e desenvolveu mania de perseguição, pois em todos os lugares aonde ia, parecia-lhe ouvir risos e cochichos sobre ser gorda.

No entanto, Karla tinha um sonho: ser “prima ballarina” do Teatro Municipal e cantar em musicais. Seus pais viram nesse desejo nova oportunidade da filha se interessar por uma dieta, se exercitar e emagrecer. E foi assim que Karla passou a estudar ballet aos seis anos. Ali, também foi motivo de brincadeiras cruéis. Aos doze anos, ouviu de sua professora que, por ser gorda, jamais seria bailarina. Engoliu a decepção, desligou-se da escola de dança e se permitiu rios de lágrimas pelos sonhos desfeitos.

Foi um período complicado: apaixonou-se por um garoto que era quem mais fazia chacotas com sua aparência. Nunca lhe falou sobre seus  sentimentos. Desistiu do amor e de ter namorados, por todos os anos seguintes. Ainda adolescente viu-se às voltas com uma disfunção hormonal da tireóide e embora tenha imediatamente começado um tratamento, o distúrbio só contribuiu para descontrolar bem mais o seu peso.

Seus pais jamais desistiram de ajudá-la, porém, com o tempo, também engordaram e a luta contra a balança, agora, era de toda família. Karla tentou varias dietas sem sucesso: emagrecia e engordava o dobro.

Mudaram-se do Rio de Janeiro para uma cidade serrana e entre a solidão e a saudade, bateu a depressão e com ela a vontade de mais comer. Nesse mesmo ano começou a cursar Odontologia e numa de suas férias realizou outro sonho que era o de trabalhar uma temporada na Disney.

Por não emagrecer, passou a questionar-se sobre a hipótese de uma cirurgia para diminuir o estomago. Relutava porque, paradoxalmente, queria ser magra comendo bem. O tempo voou e no penúltimo ano da sua faculdade, resolveu que no baile de formatura estaria magra. Marcou a operação. Aproveitou uma viagem de seus pais a Portugal, tratou dos exames, risco cirúrgico, teve reunião com cirurgião e anestesista e dez dias depois do retorno dos seus pais, aos 22 anos, com 1,71 de altura e pesando 130 quilos, Karla foi operada.

No pós operatório teve assistência de sua mãe. Karla diz que não dá para fazer uma cirurgia aberta, desse porte, sem que uma pessoa dedicada e paciente, esteja ao lado. Seis meses após, ela havia tirado do seu corpo 30 quilos. Um ano depois teve que remover a vesícula e hoje, passados dois anos, jogou fora um total de 57 quilos. Atualmente, estabilizado seu peso, inicia nova etapa: a de conseguir uma cirurgia plástica para modelar suas  pernas. 

Karla nos conta o final da sua história:

“Estou estagiando como professora de Jazz. Voltei ao sapateado e ballet. Encenei duas peças de teatro e sonho com a Broadway, mesmo sabendo do quanto preciso me preparar para chegar La!! Voltei às minhas aulas de canto. Parei de trabalhar como dentista, tenho que me decidir sobre isso. Não deveríamos fazer escolhas baseados só no presente. O que eu quero muito fazer, pode não dar mais tempo, porém,  mesmo assim vou correr atrás dos meus palcos que é onde sempre quis e quero estar. Um recado para quem enfrenta os problemas que tive: ninguém poderá te ajudar se não tiveres sonhos para realizar!”
 
 

 Nota:
Fiz essa matéria em outubro de 2010.
Hoje, Karla faz pós-graduação e trabalha em seu consultório dentário.
Paralelamente, participa de um grupo de teatro e já encenou
algumas peças na cidade onde mora.
Ensaia, atualmente, um musical cuja estreia, no Rio de Janeiro,
 será em março de 2013.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

GUERRA E PAZ - Elen de Moraes Kochman





Guerra e Paz


Elen de Moraes Kochman



Um dia nós germinamos
duma mesma sementeira
e dela nós nos tornamos
ramificação cabal,
força, raiz axial
da videira verdadeira;
também caulificação,
-a galhaça- parte inteira
pra partilha da fração.


Temos o mesmo cariz,
prerrogativa arbitral
para fazermos o bem
ou escolhermos o mal,
e decidir de que lado
vamos ficar e com quem...
Por que escolher a guerra,
essa luta indecente
que assassina e sacrifica
o nosso irmão inocente?
Que mata por ideal,
que mata em nome de Deus,
que mata em seu próprio nome?


Se pra alguns, fazer a guerra
é motivo pra ter Paz,
desprezível é o homem
que no ódio se compraz!
Animal recalcitrante
que vive sem dedicar
amor ao seu semelhante,
Semente que foi plantada
pela mão do Criador,
o mesmo Deus e Senhor.


Não adiantam armistícios
se dentro de cada um
a guerra não for sanada,
nem tampouco artifícios
por essa paz ansiada,
se começa em nossos lares,
da guerra, as preliminares!


É tão triste e dilacera
ver criança explodida
por um míssil governado,
quanto ver um inocente
pelas ruas da cidade,
da violência, nos braços.
Também, ser assassinado,
por uma bala perdida,
pela droga consumida
que contamina seu corpo,
que transforma os seus órgãos
em descartáveis pedaços!


Maldito homem tenaz,
que luta "em nome de Deus"!
Bendito homem da paz,
que acolhe inimigos seus!



quarta-feira, 14 de novembro de 2012

EM SEUS BRAÇOS - Elen de Moraes Kochman




Em Seus braços

Elen de Moraes Kochman


Descanso em seus braços...

A noite não foi sonho!
Um suave sorriso
Vivifica meus lábios...
Tinge-se de luz
Aquele olhar tristonho,

Sem brilho,
Da mulher que necessita
Ser amada.


Você,
Lascivamente satisfeito.
Eu,
Gostosamente aconchegada
No seu peito.
Dois corpos abandonados
Às delícias...
Às loucuras do amor
Que acontece.
Ligados pelo fogo da paixão
Que amanhece...



A PALAVRA - haikai Elen de Moraes Kochman





(Trecho do meu poema "O grito")


No som abafado
Da palavra
Pendurada no casulo,
Que por não ter onde cair,
Engulo...



terça-feira, 13 de novembro de 2012

AMOR INASCÍVEL - haikai - Elen de Moraes Kochman



(Trecho do meu poema "Dedos do desejo")

Do tempo, em brancas areias,
Da vida, em praias bravias,
Estiro-me às marés cheias!

Ondas amantes, vadias,
Lambem meus seios morenos,
Nos seus deleites de amar.

Os lânguidos movimentos
 Incessantes e obscenos, 
Acalmam seu marulhar.



domingo, 4 de novembro de 2012

Em brancas nuvens - haikai Elen de Moraes Kochman



Aprendi
com as nuvens
a me movimentar em todas as direções,
não me prender a nada,
a lugar nenhum...

- Trecho do meu poema "Coisas que aprendi" -






quarta-feira, 17 de outubro de 2012

BIOGRAFIA E SELEÇÃO DE POESIAS DE VICENTE DE CARVALHO





DESILUDIDA

Sou como a corça ferida
Que vai, sedenta e arquejante,
Gastando uns restos de vida
Em busca da água distante.


Bem sei que já me não ama,
E sigo, amorosa e aflita,
Essa voz que não me chama,
Esse olhar que não me fita.


Bem reconheço a loucura
Deste amor abandonado
Que se abre em flor, e procura
Viver de um sonho acabado;

E é como a corça ferida
Que vai, sedenta e arquejante,
Gastando uns restos de vida
Em busca da água distante.


Só, perdido no deserto,
Segue empós do seu carinho:
Vai se arrastando... e vai certo
Que morre pelo caminho.

Velho tema
I

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.


II

Eu cantarei de amor tão fortemente
Com tal celeuma e com tamanhos brados
Que afinal teus ouvidos, dominados,
Hão de à força escutar quanto eu sustente.

Quero que meu amor se te apresente
— Não andrajoso e mendigando agrados,
Mas tal como é: — risonho e sem cuidados,
Muito de altivo, um tanto de insolente.

Nem ele mais a desejar se atreve
Do que merece; eu te amo, e o meu desejo
Apenas cobra um bem que se me deve.

Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;
E vou de olhos enxutos e alma leve
À galharda conquista do teu beijo.


III

Belas, airosas, pálidas, altivas,
Como tu mesma, outras mulheres vejo:
São rainhas, e segue-as num cortejo
Extensa multidão de almas cativas.

Têm a alvura do mármore; lascivas
Formas; os lábios feitos para o beijo;
E indiferente e desdenhoso as vejo
Belas, airosas, pálidas, altivas...

Por quê? Porque lhes falta a todas elas,
Mesmo às que são mais puras e mais belas,
Um detalhe sutil, um quase nada:

Falta-lhes a paixão que em mim te exalta,
E entre os encantos de que brilham, falta
O vago encanto da mulher amada.


IV

Eu não espero o bem que mais desejo:
Sou condenado, e disso convencido;
Vossas palavras, com que sou punido,
São penas e verdades que sobejo.

O que dizeis é mal muito sabido,
Pois nem se esconde nem procura ensejo,
E anda à vista naquilo que mais vejo:
Em vosso olhar, severo ou distraído.

Tudo quanto afirmais eu mesmo alego:
Ao meu amor desamparado e triste
Toda a esperança de alcançar-vos nego.

Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste;
Conto-lhe o mal que vejo, e ele, que é cego,
Põe-se a sonhar o bem que não existe.

V

Alma serena e casta, que eu persigo
Com o meu sonho de amor e de pecado;
Abençoado seja, abençoado
O rigor que te salva e é meu castigo.

Assim desvies sempre do meu lado
Os teus olhos; nem ouças o que eu digo;
E assim possa morrer, morrer comigo
Esse amor criminoso e condenado.

Sê sempre pura! Eu com denodo enjeito
Uma ventura obtida com teu dano,
Bem meu que de teus males fosse feito".

Assim penso, assim quero, assim me engano
Como se não sentisse que em meu peito
Pulsa o covarde coração humano.





Saudade
 
 
Belos amores perdidos, 
Muito fiz eu com perder-vos;
Deixar-vos, sim: esquecervos
Fora demais, não o fiz.

Tudo se arranca do seio, 
— Amor, desejo, esperança...
Só não se arranca a lembrança
De quando se foi feliz.

Roseira cheia de rosas, 
Roseira cheia de espinhos,
Que eu deixei pelos caminhos,
Aberta em flor, e parti:

Por me não perder, perdi-te:
Mas mal posso assegurar-me,
— Com te perder e ganhar-me, 
Se ganhei, ou se perdi...



 A FLOR E A FONTE

"Deixa-me, fonte!" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Cantava, levando a flor.
"Deixa-me, deixa-me, fonte!"
Dizia a flor a chorar:
"Eu fui nascida no monte...
"Não me leves para o mar".
E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.
"Ai, balanços do meu galho,
"Balanços do berço meu;
"Ai, claras gotas de orvalho
"Caídas do azul do céu!...
Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror,
E a fonte, sonora e fria
Rolava levando a flor.
"Adeus, sombra das ramadas,
"Cantigas do rouxinol;
"Ai, festa das madrugadas,
"Doçuras do pôr do sol;
"Carícia das brisas leves
"Que abrem rasgões de luar...
"Fonte, fonte, não me leves,
"Não me leves para o mar!..."
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...



Cantiga Praiana
Ouves acaso quando entardece
Vago murmúrio que vem do mar,
Vago murmúrio que mais parece
Voz de uma prece
 Morrendo no ar?

Beijando a areia, batendo as fráguas,
Choram as ondas; choram em vão:
O inútil choro das tristes águas
Enche de mágoas
A solidão...

Duvidas que haja clamor no mundo
Mais vão, mais triste que esse clamor?
Ouve que vozes de moribundo
Sobem do fundo
Do meu amor.


 
Biografia

Vicente de Carvalho
Nascido em Santos SP
Época do Parnasianismo
Brasil
 
Vicente de Carvalho (Santos SP, 1866 - 1924) publicou seu primeiro livro de poesias, Ardentias, em 1885.
No ano seguinte, formou-se bacharel na Faculdade de Direito de São Paulo SP. Na época, colaborou nos jornais O Patriota, A Idéia Nova, Piratini, O Correio da Manhã e A Tribuna. Foi membro do Diretório Republicano de Santos SP e participou na Boemia Abolicionista, encaminhando escravos fugitivos para o Quilombo Jabaquara. 
Candidatou-se a deputado provincial no Congresso Republicano, em 1887, em São Paulo. Em 1889 foi redator do Diário de Santos, e fundou o Diário da Manhã em Santos. Tornou-se Deputado no Congresso Constituinte do Estado em 1891, vindo a participar na Comissão Redatora da Constituinte. Entre 1894 e 1913 foi colaborador em O Estado de S. Paulo, sob o pseudônimo de João d'Amaia. Fundou O Jornal, em Santos, em 1905, e colaborou na Revista dos Educadores, em 1912.
Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1909. No período de 1914 a 1920 foi Ministro do Tribunal de Justiça do Estado, em Santos. Em 1924 publicou Luizinha, comédia em dois atos.
Fazem parte de sua obra poética os livros Relicário (1888), Rosa, Rosa de Amor (1902), Poemas e Canções (1908), Verso e Prosa (1909), Páginas Soltas (1911) e Versos da Mocidade (1912).
Vicente de Carvalho é um dos principais nomes da poesia parnasiana brasileira; em seus versos, tematizou com freqüência a natureza, principalmente o mar, alguns momentos da história brasileira e o amor.

LER SOBRE O PARNASIANISMO:

terça-feira, 16 de outubro de 2012

ESVOAÇAR QUE TOCA NOSSA ALMA - Eduardo Jorge Ramatis



Um poema de 
Eduardo Jorge (Ramatis),

escrito para Elen de Moraes Kochman
(Borboleta poeta)


Esvoaçar que toca nossa alma

Eduardo Jorge
(Ramatis)

Pela noite dentro,
esvoaçam tuas asas soltas, libertas,
teus voos sonhados, vividos,
entregues, sentidos, suaves,
esvoaçando entre nós,
 em danças de soltos gestos,
em rimas de poemas conseguidos,
como gestos de amizade repartidos,
tocando a alma de todos nós,
com teus voos picados e sentidos.

Que o teu esvoaçar,
nunca se perca
 das noites que connosco repartes;
que o suave toque de tuas asas,
não deixe nunca de tocar nossas almas.

Contacto aprazível de asa de borboleta,
como quem afaga nosso rosto
 enfeitiçado pelos suaves
 e ternos gestos de amizade,
entregues a virtuais voos de repartição




sábado, 13 de outubro de 2012

POESIAS DE MIGUEL TORGA - (+ biografia)






 Mudez

Que desgraça, meu Deus!
Tenho a Ilíada aberta à minha frente,
Tenho a memória cheia de poemas,
Tenho os versos que fiz,
E todo o santo dia me rasguei
À procura não sei
De que palavra, síntese ou imagem!
Desço dentro de mim, olho a paisagem,
Analiso o que sou, penso o que vejo,
E sempre o mesmo trágico desejo
De dar outra expressão ao que foi dito!
Sempre a mesma vontade de gritar,
Embora de antemão a duvidar
Da exactidão e força desse grito.
Mudo, mesmo se falo, e mudo ainda
Na voz dos outros, todo eu me afogo
Neste mar de silêncio, íntima noite
Sem madrugada.
Silêncio de criança que ficasse
Toda a vida criança,
E nunca conseguisse semelhança
Entre o pavor e o pranto que chorasse.



Súplica



Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

 
É contra mim que luto
É contra mim que luto.
Não tenho outro inimigo.
O que penso, o que sinto,
o que digo, e o que faço,
é que pede castigo
e desespera a lança no
meu braço.
Absurda aliança de
criança e adulto,
o que sou é um insulto
ao que não sou;
e combato esse vulto que
à traição me invadiu e me
ocupou.
Infeliz com loucura e sem loucura,
peço à vida outra vida,
outra aventura,
outro incerto destino.
Não me dou por vencido,
nem convencido.
E agrido em mim o homem e o menino.


Maceração


Pisa os meus versos, Musa insatisfeita!
Nenhum deles te merece.
São frutos acres que não apetece
Comer.
Falta-lhes génio, o sol que amadurece
O que sabe nascer.
Cospe de tédio e nojo
Em cada imagem que te desfigura.
Nega esta rima impura
Que responde de ouvido.
Denuncia estas sílabas contadas,
Vestígios digitais do evadido
Que deixa atrás de si as impressões marcadas.
E corta-me de vez as asas que me deste.
Mandaste-me voar;
E eu tinha um corpo inteiro a recusar
Esse ímpeto celeste.
Livro de Horas

Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
de virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!

 

Écloga


Demos as mãos. Aquece e aproxima.
Temos tão pouco tempo!
Dentro de nós germina
O desencanto,
Mas os tojos são tenros ao nascer...
E enquanto
O rebanho rumina,
Podemo-nos amar sem padecer.
Sim, é fugaz esta ternura aflita,
Mas não há outra com mais duração.
A eternidade
É o sono que, maciço, no caixão
Aguarda o desenlace deste dia
Todo acordado, todo claridade,
Breve aceno do sol que o alumia

Desfecho


Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.

Ave da esperança

Passo a noite a sonhar o amanhecer.
Sou a ave da esperança.
Pássaro triste que na luz do sol
Aquece as alegrias do futuro,
O tempo que há-de vir sem este muro
De silêncio e negrura
A cercá-lo de medo e de espessura
Maciça e tumular;
O tempo que há-de vir - esse desejo
Com asas, primavera e liberdade;
Tempo que ninguém há-de
Corromper
Com palavras de amor, que são a morte
Antes de se morrer.

 



Tempo


Tempo — definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada.

Tempo...
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!


 Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'



Quase um Poema de Amor


Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
— Há muito tempo já que não escrevo 
um poema de amor.

Miguel Torga, in 'Diário V'


Da Realidade


Que renda fez a tarde no jardim,
Que há cedros que parecem de enxoval?
Como é difícil ver o natural
Quando a hora não quer!
Ah! não digas que não ao que os teus olhos
Colham nos dias de irrealidade.
Tudo então é verdade,
Toda a rama parece
Um tecido que tece
A eternidade.
Miguel Torga, in 'Nihil Sibi'


Frustração

Foi bonito
O meu sonho de amor.
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera.
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais.

Miguel Torga, in 'Diário XV'

Esperança

Tantas formas revestes, e nenhuma
Me satisfaz!
Vens às vezes no amor, e quase te acredito.
Mas todo o amor é um grito
Desesperado
Que apenas ouve o eco...
Peco
Por absurdo humano:
Quero não sei que cálice profano
Cheio de um vinho herético e sagrado.

Miguel Torga, in 'Penas do Purgatório'



Identidade

Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.

Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.

Mas como as inscrições nas penedias
Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.

Miguel Torga, in 'Penas do Purgatório'


Amor

A jovem deusa passa
Com véus discretos sobre a virgindade;
Olha e não olha, como a mocidade;
E um jovem deus pressente aquela graça.

Depois, a vide do desejo enlaça
Numa só volta a dupla divindade;
E os jovens deuses abrem-se à verdade,
Sedentos de beber na mesma taça.

É um vinho amargo que lhes cresta a boca;
Um condão vago que os desperta e toca
De humana e dolorosa consciência.

E abraçam-se de novo, já sem asas.
Homens apenas. Vivos como brasas,
A queimar o que resta da inocência.

Miguel Torga, in 'Libertação'

Aos Poetas

Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.

E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.

Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.

Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.

Miguel Torga, in 'Odes'



ORGASMO

Deixa que eu te descubra, anónima paisagem,
Corpo de virgem que não amo ainda!
Fauno das fragas e dos horizontes,
Sonho contigo sem te conhecer…
Sonho contigo nua, a pertencer
Ao silêncio devasso e à solidão!
Num pesadelo, vejo amanhecer
O sol e o vento no teu coração!


E é um ciúme de Otelo que me rói!
Só eu não posso acarinhar a sombra
Do teu rosto velado!
Só eu vivo afastado
Dos teus encantos!
E são tantos
E tais!
Que eu não posso, paisagem,
Esperar mais!


Miguel Torga, Diário V



Outono

Tarde pintada

Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.




Biografia de Miguel Torga


Miguel Torga nasceu em 1907 em S.w Martinho de Anta, concelho de Sabrosa Trás os Montes, aldeia onde cresceu e que o havia de marcar para toda a vida. De nome Adolfo Correia da Rocha, adoptou o pseudónimo de Miguel Torga(torga é o nome dado à urze campestre que sobrevive nas fragas das montanhas, com raízes muito duras infiltradas por entre as rochas). Depois de uma breve estadia no Porto, frequentou apenas por um ano, o seminário em Lamego. Em 1920 partiu para o Brasil, onde foi recebido na fazenda de um tio. Regressou depois a Portugal acompanhado do tio, que se prontificou a custear lhe os estudos em Coimbra. Em apenas três anos fez o curso do liceu, matriculando se a seguir na Faculdade de Medicina, onde terminou o curso em 1933. Exerceu a profissão na terra natal, passou por Miranda do Corvo, mas foi em Coimbra que alguns anos mais tarde acabou por se fixar. "Atordoado na meninice e escravizado na adolescência, só agora podia renascer ao pé de cada rebento, correr a par de cada ribeiro, voar ao lado de cada ave", pouco sociável, mitigou a solidão rodeando se de livros. Foi logo após ter entrado para a universidade, que deu início à sua obra literária, com os livros "Ansiedade" e "Rampa". Só em 1936 passou a usar o pseudónimo que o havia de imortalizar. Desde a década de trinta até 1944, escreveu uma obra vasta e marcante, em poesia, prosa e teatro. Não oferecia livros a ninguém, não dava autógrafos ou dedicatórias, para que o leitor fosse livre ao julgar o texto. Foi várias vezes candidato a Prémio Nobel da Literatura. Ganhou vários prémios entre eles o Grande Prémio Internacional de Poesia e em 1985 o Prémio Camões. Com ideias que se demarcavam do salazarismo, foi preso e pensou em sair do país, mas não o fez por se sentir preso à pátria e a Trás os Montes, longe do qual seria um "cadáver a respirar". A sua poesia reflecte as apreensões, esperanças e angústias do seu tempo. Nos volumes do seu Diário, em prosa e em verso, encontramos crítica social, apontamentos de paisagem, esboço de contos, apreciações culturais e também magníficos textos da mais alta poesia. Toda a sua obra, embora multifacetada, é a expressão de um indivíduo vibrante e enternecido pelas criaturas, tremendamente ligado à sua terra natal. Faleceu em 1995. Em 1996 foi fundado o Círculo Cultural Miguel Torga.
Bibliografia:
Poesia: "Ansiedade" (1928), "Rampa" (1930), "Tributo" (1931), "Abismo" (1932), "O outro Livro de Job" (1936), "Lamentação" (1943), "Libertação" (1944), "Odes" (1946), "Nihil Sibi" (1948), "Cântico do Homem" (1950), "Alguns Poemas Ibéricos" (1952), "Penas do Purgatório" (1954), "Orfeu Rebelde" (1958), "Câmara Ardente" (1962), "Poemas Ibéricos" (1965). Ficção: "Pão Ázimo" (1931), "A Terceira Voz" (1934), "A Criação do Mundo" (5 volumes, 1937 1938 1939 1974 1981), "Bichos" (contos, 1940), "Contos da Montanha" (1941), "Rua" (1942), "O Senhor Ventura" (1943), "Novos Contos da Montanha" (1944), "Vindima" (romance, 1945), "Pedras Lavradas" (contos, 1951), "Traço de União" (1955), "Fogo Preso" (1976). Teatro: "Terra Firme, Mar" (1941), "O Paraíso" (1949), "Sinfonia" (poema dramático)(1947). Literatura autobiográfica: "Diário" (16 volumes, 1941 1993), "Portugal" (1950).

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