"Somethings in the rain" - playlist da série

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

BIOGRAFIA E SELEÇÃO DE POESIAS DE VICENTE DE CARVALHO





DESILUDIDA

Sou como a corça ferida
Que vai, sedenta e arquejante,
Gastando uns restos de vida
Em busca da água distante.


Bem sei que já me não ama,
E sigo, amorosa e aflita,
Essa voz que não me chama,
Esse olhar que não me fita.


Bem reconheço a loucura
Deste amor abandonado
Que se abre em flor, e procura
Viver de um sonho acabado;

E é como a corça ferida
Que vai, sedenta e arquejante,
Gastando uns restos de vida
Em busca da água distante.


Só, perdido no deserto,
Segue empós do seu carinho:
Vai se arrastando... e vai certo
Que morre pelo caminho.

Velho tema
I

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.


II

Eu cantarei de amor tão fortemente
Com tal celeuma e com tamanhos brados
Que afinal teus ouvidos, dominados,
Hão de à força escutar quanto eu sustente.

Quero que meu amor se te apresente
— Não andrajoso e mendigando agrados,
Mas tal como é: — risonho e sem cuidados,
Muito de altivo, um tanto de insolente.

Nem ele mais a desejar se atreve
Do que merece; eu te amo, e o meu desejo
Apenas cobra um bem que se me deve.

Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;
E vou de olhos enxutos e alma leve
À galharda conquista do teu beijo.


III

Belas, airosas, pálidas, altivas,
Como tu mesma, outras mulheres vejo:
São rainhas, e segue-as num cortejo
Extensa multidão de almas cativas.

Têm a alvura do mármore; lascivas
Formas; os lábios feitos para o beijo;
E indiferente e desdenhoso as vejo
Belas, airosas, pálidas, altivas...

Por quê? Porque lhes falta a todas elas,
Mesmo às que são mais puras e mais belas,
Um detalhe sutil, um quase nada:

Falta-lhes a paixão que em mim te exalta,
E entre os encantos de que brilham, falta
O vago encanto da mulher amada.


IV

Eu não espero o bem que mais desejo:
Sou condenado, e disso convencido;
Vossas palavras, com que sou punido,
São penas e verdades que sobejo.

O que dizeis é mal muito sabido,
Pois nem se esconde nem procura ensejo,
E anda à vista naquilo que mais vejo:
Em vosso olhar, severo ou distraído.

Tudo quanto afirmais eu mesmo alego:
Ao meu amor desamparado e triste
Toda a esperança de alcançar-vos nego.

Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste;
Conto-lhe o mal que vejo, e ele, que é cego,
Põe-se a sonhar o bem que não existe.

V

Alma serena e casta, que eu persigo
Com o meu sonho de amor e de pecado;
Abençoado seja, abençoado
O rigor que te salva e é meu castigo.

Assim desvies sempre do meu lado
Os teus olhos; nem ouças o que eu digo;
E assim possa morrer, morrer comigo
Esse amor criminoso e condenado.

Sê sempre pura! Eu com denodo enjeito
Uma ventura obtida com teu dano,
Bem meu que de teus males fosse feito".

Assim penso, assim quero, assim me engano
Como se não sentisse que em meu peito
Pulsa o covarde coração humano.





Saudade
 
 
Belos amores perdidos, 
Muito fiz eu com perder-vos;
Deixar-vos, sim: esquecervos
Fora demais, não o fiz.

Tudo se arranca do seio, 
— Amor, desejo, esperança...
Só não se arranca a lembrança
De quando se foi feliz.

Roseira cheia de rosas, 
Roseira cheia de espinhos,
Que eu deixei pelos caminhos,
Aberta em flor, e parti:

Por me não perder, perdi-te:
Mas mal posso assegurar-me,
— Com te perder e ganhar-me, 
Se ganhei, ou se perdi...



 A FLOR E A FONTE

"Deixa-me, fonte!" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Cantava, levando a flor.
"Deixa-me, deixa-me, fonte!"
Dizia a flor a chorar:
"Eu fui nascida no monte...
"Não me leves para o mar".
E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.
"Ai, balanços do meu galho,
"Balanços do berço meu;
"Ai, claras gotas de orvalho
"Caídas do azul do céu!...
Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror,
E a fonte, sonora e fria
Rolava levando a flor.
"Adeus, sombra das ramadas,
"Cantigas do rouxinol;
"Ai, festa das madrugadas,
"Doçuras do pôr do sol;
"Carícia das brisas leves
"Que abrem rasgões de luar...
"Fonte, fonte, não me leves,
"Não me leves para o mar!..."
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...



Cantiga Praiana
Ouves acaso quando entardece
Vago murmúrio que vem do mar,
Vago murmúrio que mais parece
Voz de uma prece
 Morrendo no ar?

Beijando a areia, batendo as fráguas,
Choram as ondas; choram em vão:
O inútil choro das tristes águas
Enche de mágoas
A solidão...

Duvidas que haja clamor no mundo
Mais vão, mais triste que esse clamor?
Ouve que vozes de moribundo
Sobem do fundo
Do meu amor.


 
Biografia

Vicente de Carvalho
Nascido em Santos SP
Época do Parnasianismo
Brasil
 
Vicente de Carvalho (Santos SP, 1866 - 1924) publicou seu primeiro livro de poesias, Ardentias, em 1885.
No ano seguinte, formou-se bacharel na Faculdade de Direito de São Paulo SP. Na época, colaborou nos jornais O Patriota, A Idéia Nova, Piratini, O Correio da Manhã e A Tribuna. Foi membro do Diretório Republicano de Santos SP e participou na Boemia Abolicionista, encaminhando escravos fugitivos para o Quilombo Jabaquara. 
Candidatou-se a deputado provincial no Congresso Republicano, em 1887, em São Paulo. Em 1889 foi redator do Diário de Santos, e fundou o Diário da Manhã em Santos. Tornou-se Deputado no Congresso Constituinte do Estado em 1891, vindo a participar na Comissão Redatora da Constituinte. Entre 1894 e 1913 foi colaborador em O Estado de S. Paulo, sob o pseudônimo de João d'Amaia. Fundou O Jornal, em Santos, em 1905, e colaborou na Revista dos Educadores, em 1912.
Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1909. No período de 1914 a 1920 foi Ministro do Tribunal de Justiça do Estado, em Santos. Em 1924 publicou Luizinha, comédia em dois atos.
Fazem parte de sua obra poética os livros Relicário (1888), Rosa, Rosa de Amor (1902), Poemas e Canções (1908), Verso e Prosa (1909), Páginas Soltas (1911) e Versos da Mocidade (1912).
Vicente de Carvalho é um dos principais nomes da poesia parnasiana brasileira; em seus versos, tematizou com freqüência a natureza, principalmente o mar, alguns momentos da história brasileira e o amor.

LER SOBRE O PARNASIANISMO:

terça-feira, 16 de outubro de 2012

ESVOAÇAR QUE TOCA NOSSA ALMA - Eduardo Jorge Ramatis



Um poema de 
Eduardo Jorge (Ramatis),

escrito para Elen de Moraes Kochman
(Borboleta poeta)


Esvoaçar que toca nossa alma

Eduardo Jorge
(Ramatis)

Pela noite dentro,
esvoaçam tuas asas soltas, libertas,
teus voos sonhados, vividos,
entregues, sentidos, suaves,
esvoaçando entre nós,
 em danças de soltos gestos,
em rimas de poemas conseguidos,
como gestos de amizade repartidos,
tocando a alma de todos nós,
com teus voos picados e sentidos.

Que o teu esvoaçar,
nunca se perca
 das noites que connosco repartes;
que o suave toque de tuas asas,
não deixe nunca de tocar nossas almas.

Contacto aprazível de asa de borboleta,
como quem afaga nosso rosto
 enfeitiçado pelos suaves
 e ternos gestos de amizade,
entregues a virtuais voos de repartição




sábado, 13 de outubro de 2012

POESIAS DE MIGUEL TORGA - (+ biografia)






 Mudez

Que desgraça, meu Deus!
Tenho a Ilíada aberta à minha frente,
Tenho a memória cheia de poemas,
Tenho os versos que fiz,
E todo o santo dia me rasguei
À procura não sei
De que palavra, síntese ou imagem!
Desço dentro de mim, olho a paisagem,
Analiso o que sou, penso o que vejo,
E sempre o mesmo trágico desejo
De dar outra expressão ao que foi dito!
Sempre a mesma vontade de gritar,
Embora de antemão a duvidar
Da exactidão e força desse grito.
Mudo, mesmo se falo, e mudo ainda
Na voz dos outros, todo eu me afogo
Neste mar de silêncio, íntima noite
Sem madrugada.
Silêncio de criança que ficasse
Toda a vida criança,
E nunca conseguisse semelhança
Entre o pavor e o pranto que chorasse.



Súplica



Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

 
É contra mim que luto
É contra mim que luto.
Não tenho outro inimigo.
O que penso, o que sinto,
o que digo, e o que faço,
é que pede castigo
e desespera a lança no
meu braço.
Absurda aliança de
criança e adulto,
o que sou é um insulto
ao que não sou;
e combato esse vulto que
à traição me invadiu e me
ocupou.
Infeliz com loucura e sem loucura,
peço à vida outra vida,
outra aventura,
outro incerto destino.
Não me dou por vencido,
nem convencido.
E agrido em mim o homem e o menino.


Maceração


Pisa os meus versos, Musa insatisfeita!
Nenhum deles te merece.
São frutos acres que não apetece
Comer.
Falta-lhes génio, o sol que amadurece
O que sabe nascer.
Cospe de tédio e nojo
Em cada imagem que te desfigura.
Nega esta rima impura
Que responde de ouvido.
Denuncia estas sílabas contadas,
Vestígios digitais do evadido
Que deixa atrás de si as impressões marcadas.
E corta-me de vez as asas que me deste.
Mandaste-me voar;
E eu tinha um corpo inteiro a recusar
Esse ímpeto celeste.
Livro de Horas

Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
Me confesso
possesso
de virtudes teologais,
que são três,
e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.
Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!

 

Écloga


Demos as mãos. Aquece e aproxima.
Temos tão pouco tempo!
Dentro de nós germina
O desencanto,
Mas os tojos são tenros ao nascer...
E enquanto
O rebanho rumina,
Podemo-nos amar sem padecer.
Sim, é fugaz esta ternura aflita,
Mas não há outra com mais duração.
A eternidade
É o sono que, maciço, no caixão
Aguarda o desenlace deste dia
Todo acordado, todo claridade,
Breve aceno do sol que o alumia

Desfecho


Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.

Ave da esperança

Passo a noite a sonhar o amanhecer.
Sou a ave da esperança.
Pássaro triste que na luz do sol
Aquece as alegrias do futuro,
O tempo que há-de vir sem este muro
De silêncio e negrura
A cercá-lo de medo e de espessura
Maciça e tumular;
O tempo que há-de vir - esse desejo
Com asas, primavera e liberdade;
Tempo que ninguém há-de
Corromper
Com palavras de amor, que são a morte
Antes de se morrer.

 



Tempo


Tempo — definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada.

Tempo...
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!


 Miguel Torga, in 'Cântico do Homem'



Quase um Poema de Amor


Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
— Há muito tempo já que não escrevo 
um poema de amor.

Miguel Torga, in 'Diário V'


Da Realidade


Que renda fez a tarde no jardim,
Que há cedros que parecem de enxoval?
Como é difícil ver o natural
Quando a hora não quer!
Ah! não digas que não ao que os teus olhos
Colham nos dias de irrealidade.
Tudo então é verdade,
Toda a rama parece
Um tecido que tece
A eternidade.
Miguel Torga, in 'Nihil Sibi'


Frustração

Foi bonito
O meu sonho de amor.
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera.
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais.

Miguel Torga, in 'Diário XV'

Esperança

Tantas formas revestes, e nenhuma
Me satisfaz!
Vens às vezes no amor, e quase te acredito.
Mas todo o amor é um grito
Desesperado
Que apenas ouve o eco...
Peco
Por absurdo humano:
Quero não sei que cálice profano
Cheio de um vinho herético e sagrado.

Miguel Torga, in 'Penas do Purgatório'



Identidade

Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.

Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.

Mas como as inscrições nas penedias
Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.

Miguel Torga, in 'Penas do Purgatório'


Amor

A jovem deusa passa
Com véus discretos sobre a virgindade;
Olha e não olha, como a mocidade;
E um jovem deus pressente aquela graça.

Depois, a vide do desejo enlaça
Numa só volta a dupla divindade;
E os jovens deuses abrem-se à verdade,
Sedentos de beber na mesma taça.

É um vinho amargo que lhes cresta a boca;
Um condão vago que os desperta e toca
De humana e dolorosa consciência.

E abraçam-se de novo, já sem asas.
Homens apenas. Vivos como brasas,
A queimar o que resta da inocência.

Miguel Torga, in 'Libertação'

Aos Poetas

Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.

E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.

Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.

Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.

Miguel Torga, in 'Odes'



ORGASMO

Deixa que eu te descubra, anónima paisagem,
Corpo de virgem que não amo ainda!
Fauno das fragas e dos horizontes,
Sonho contigo sem te conhecer…
Sonho contigo nua, a pertencer
Ao silêncio devasso e à solidão!
Num pesadelo, vejo amanhecer
O sol e o vento no teu coração!


E é um ciúme de Otelo que me rói!
Só eu não posso acarinhar a sombra
Do teu rosto velado!
Só eu vivo afastado
Dos teus encantos!
E são tantos
E tais!
Que eu não posso, paisagem,
Esperar mais!


Miguel Torga, Diário V



Outono

Tarde pintada

Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.




Biografia de Miguel Torga


Miguel Torga nasceu em 1907 em S.w Martinho de Anta, concelho de Sabrosa Trás os Montes, aldeia onde cresceu e que o havia de marcar para toda a vida. De nome Adolfo Correia da Rocha, adoptou o pseudónimo de Miguel Torga(torga é o nome dado à urze campestre que sobrevive nas fragas das montanhas, com raízes muito duras infiltradas por entre as rochas). Depois de uma breve estadia no Porto, frequentou apenas por um ano, o seminário em Lamego. Em 1920 partiu para o Brasil, onde foi recebido na fazenda de um tio. Regressou depois a Portugal acompanhado do tio, que se prontificou a custear lhe os estudos em Coimbra. Em apenas três anos fez o curso do liceu, matriculando se a seguir na Faculdade de Medicina, onde terminou o curso em 1933. Exerceu a profissão na terra natal, passou por Miranda do Corvo, mas foi em Coimbra que alguns anos mais tarde acabou por se fixar. "Atordoado na meninice e escravizado na adolescência, só agora podia renascer ao pé de cada rebento, correr a par de cada ribeiro, voar ao lado de cada ave", pouco sociável, mitigou a solidão rodeando se de livros. Foi logo após ter entrado para a universidade, que deu início à sua obra literária, com os livros "Ansiedade" e "Rampa". Só em 1936 passou a usar o pseudónimo que o havia de imortalizar. Desde a década de trinta até 1944, escreveu uma obra vasta e marcante, em poesia, prosa e teatro. Não oferecia livros a ninguém, não dava autógrafos ou dedicatórias, para que o leitor fosse livre ao julgar o texto. Foi várias vezes candidato a Prémio Nobel da Literatura. Ganhou vários prémios entre eles o Grande Prémio Internacional de Poesia e em 1985 o Prémio Camões. Com ideias que se demarcavam do salazarismo, foi preso e pensou em sair do país, mas não o fez por se sentir preso à pátria e a Trás os Montes, longe do qual seria um "cadáver a respirar". A sua poesia reflecte as apreensões, esperanças e angústias do seu tempo. Nos volumes do seu Diário, em prosa e em verso, encontramos crítica social, apontamentos de paisagem, esboço de contos, apreciações culturais e também magníficos textos da mais alta poesia. Toda a sua obra, embora multifacetada, é a expressão de um indivíduo vibrante e enternecido pelas criaturas, tremendamente ligado à sua terra natal. Faleceu em 1995. Em 1996 foi fundado o Círculo Cultural Miguel Torga.
Bibliografia:
Poesia: "Ansiedade" (1928), "Rampa" (1930), "Tributo" (1931), "Abismo" (1932), "O outro Livro de Job" (1936), "Lamentação" (1943), "Libertação" (1944), "Odes" (1946), "Nihil Sibi" (1948), "Cântico do Homem" (1950), "Alguns Poemas Ibéricos" (1952), "Penas do Purgatório" (1954), "Orfeu Rebelde" (1958), "Câmara Ardente" (1962), "Poemas Ibéricos" (1965). Ficção: "Pão Ázimo" (1931), "A Terceira Voz" (1934), "A Criação do Mundo" (5 volumes, 1937 1938 1939 1974 1981), "Bichos" (contos, 1940), "Contos da Montanha" (1941), "Rua" (1942), "O Senhor Ventura" (1943), "Novos Contos da Montanha" (1944), "Vindima" (romance, 1945), "Pedras Lavradas" (contos, 1951), "Traço de União" (1955), "Fogo Preso" (1976). Teatro: "Terra Firme, Mar" (1941), "O Paraíso" (1949), "Sinfonia" (poema dramático)(1947). Literatura autobiográfica: "Diário" (16 volumes, 1941 1993), "Portugal" (1950).

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

INSENSATEZ- (ciranda)- Elen de Moraes Kochman, NO INSTANTE EM QUE TU ME QUISERES - Luiz Poeta, - AUSÊNCIA - Decio de Oliveira, A MIM NADA ME FALTA - José M. Raposo






NO INSTANTE EM QUE TU ME QUISERES

Luiz Poeta
- Luiz Gilberto de Barros - 
Às 23 h e 23 min do dia 19 de agosto de 2007
Especialmente para a poesia de Elen de Moraes




Como tu és tola ! Insensatamente,
Dizes que eu te falto... Mas se tu me evocas,
Eu me aproximo... Entro em tua mente
E, se tu quiseres.. Tu até me tocas !

Sentes minha falta, mas estou tão perto;
Na verdade dentro do teu coração...
E se o coração não está mais deserto,
Como eu te falto ? Se te amo então ?

Choras minha ausência, mas quando tu choras,
Quem acaricia o teu rosto triste ?
Não é na saudade que te revigoras ?
Se sentes saudades... A presença existe !

Dizes que me beijas quando estás sonhando;
Que sou só um vulto nos teus pensamentos,
Mas se tu me beijas, tu estás me amando,
Não estás sozinha... Tens meus sentimentos.

Queres que eu volte... Pensa, sonha...chama !
O amor reclama, quando a solidão
Sofre o abandono de quem não se ama
E se tu não amas, nem tens coração...

Quando tu sonhares... Não te desesperes.
Pede o que tu queres e eu te atenderei
Chegarei no instante que tu me quiseres
Pede que eu te ame... E eu te amarei.

Porém, quando o sonho, gradativamente
Afastar meu rosto desse teu olhar...
Não chores, não sofras... É na tua mente
Que o meu amor insiste em se abrigar.

Então, quando um dia, triste, desistires
De sonhar, a vida te acolherá;
Não precisarás partir, mas se fugires
Tu me levarás dentro do teu olhar.



AUSÊNCIA


Décio de Oliveira

Cemiterio de lembranças
no mar morto da saudade
levada nas asas do esquecimento!
Pensamentos
que se confundem com as vagas
que nao cessam
e se perdem
nas cavernas virgens dos rochedos
no oceano derramadas.
Pedaços da alma
dispersos na bruma
do luar que chora
quando a aurora desperta
os sonhos amortecem
e, de luto vestida,
carpe a saudade
despojada de amor.

A MIM NADA ME FALTA

Jose M. Raposo

A mim nada me dói,
Nada me falta...
Nem lembranças,
Nem esquecimentos,
Nem a brisa de soltos ventos
Bailando  nos pinheirais.

A mim nada me falta...
Nas longas noites sonhando
Em que meus pobres madrigais,
Num coração palpitando,
Fazem o amor ferver.

Nem que a montanha mais alta
Eu tenha de escalar,
Para que eu possa dizer
E a todo o mundo gritar
Que por eu não te esquecer,
A mim nada me falta...




domingo, 7 de outubro de 2012

VOO SOLO (Liberdade vigiada) - Elen de Moraes Kochman





Voo Solo


Elen de Moraes



A alma,
liberta do assédio do tempo,
descansa
no colo da inocência.

O corpo,
refém das paixões
e dos desejos,
desata-se
das garras cruéis da solidão.

Os pés,
vestidos com sapatilhas

de sonhos,
tropeçam
nos caminhos
anoitecidos pelo tédio.
 

O pensamento
prisioneiro,
mas libertário das palavras,
reinventa
os versos da sua poesia.

O coração,
perdido nas encruzilhadas
do amor,
desfibra-se
nos tortuosos meandros da rejeição.

As asas,
embaraçadas nas grades
da indiferença,
desvencilham-se
das teias do conformismo,
desenredam-se
dos nós que atam
a sua liberdade vigiada...


E alça seu voo solo.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O TEMPO E SUA ETERNIDADE - Elen de Moraes Kochman



O tempo e sua eternidade


Elen de Moraes Kochman


O tempo que movimenta pensadores, poetas, religiosos, historiadores, psicólogos e muitos mais, que não nos aflige quando jovens diligentes e sonhadores, no entanto, que nos  atormenta numa determinada altura da vida, quando sentimos o seu galope desenfreado e nos percebemos cansados para domá-lo, é um aliado para os otimistas e realizadores e um indiferente apressado para quem vive por viver e deixa a vida acontecer, sem prestar atenção à própria existência.



Com a finitude do Ser, terá o tempo um fim ou será o tempo a própria eternidade? Não raro me pego envolvida com esses questionamentos.


Antes me batia uma grande ansiedade nesses instantes de ponderações e como me furtava a entendê-los, sacudia os pensamentos, deixava a angústia bater asas, o cérebro  neutralizar as dúvidas e as explicações. Porém, fui me dando conta de que não adiantava fugir, porque o tempo torna-se um partícipe assíduo das minhas incertezas à medida que a vida avança e a idade se diverte com as marcas das expressões que me surgem, que vão dando ênfase ao meu rosto e ao meu corpo, e me enxergo no abraço desse tempo, sendo levada como nas águas de um dique que se rompe.


Atiça-nos a vontade de segurar o tempo ao darmos conta de que ele é escasso quando, com a agitação das grandes cidades, os dias correm, as noites voam, o corpo mal se adapta e descansa e a mente insone entra pela madrugada, acompanhada – e tão só – pelo silêncio das altas horas e os embates do cotidiano. Em contrapartida, a vida no campo, que passa em câmera lenta, com sua pasmaceira, do mesmo modo que nos dá a vantagem da contemplação, nos incita o desejo de movimentar e adiantar esse tempo.


Quando o filme da nossa vida começa a rodar e surgem as imagens de uma época que nos parece tão recente, mas tão longínqua, incomoda constatar que o tempo se alia à fragilidade do Ser para mostrar a nossa limitação. Nessas horas me vem à lembrança o sábio e famoso conselho que o poeta romano Horácio (65 a 8 a.C.) deu à sua amiga Leucone, (ODES -1,11.8- “...carpe diem, quam minimum crédula postero”): “...colha o dia de hoje, quanto confie o mínimo possível no amanhã”.  Por acreditar em vãs promessas e fazer planos para um futuro distante demais do hoje (e aguardar a sua chegada), é que perdemos parte da existência e da felicidade.

Por que adormecer os sonhos, postergando-os, à espera de dias melhores? Já agi assim e não tive frutos a colher. Então, hoje trago-os bem acordados! Se eles são os meus desejos possíveis, se só dependem de mim, quero, devo e tento realiza-los o mais breve que posso. Se não, troco-os por uma realidade mais à vista, porque não quero nada que me impeça de viver, plenamente, cada hora do meu aqui e agora.

Para quem cultua o presente, o tempo é música que canta para a vida que segue adiante, é a consciência do instante, é o olhar sobre a natureza que desabrocha, é o sorriso da paisagem revisitada a cada manhã. Faz-me lembrar das palavras do meu Mestre, em Mateus 6.34: “Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã; porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal”.

O tempo não é o senhor absoluto do meu futuro, tampouco guardião do baú onde conservo lembranças e mágoas do que foi ou do que poderia ter sido e, sim, o amigo que permito acompanhar-me enquanto vivo. Digo, não sou mais escrava de um tempo marcado, de horas e minutos cronometrados. De mãos dadas - eu e ele - seguimos o curso natural da vida. Se ele tiver pressa, que se adiante e me deixe ao sabor dos meus momentos e sentimentos..

Há quem diga que o tempo é o vazio que sobra depois de tudo; outros, que é a consciência mais nítida do que acontece à nossa volta e há ainda quem afirme que é o elo entre o passado, o presente e o futuro. No entanto, para muitos que têm o privilégio de se debruçar sobre a janela do tempo, é o caminho inexorável cujo portal atravessam, com tranquilidade e aceitação, enquanto envelhecem. 

O tempo pode mudar a nossa aparência, deixar à flor da pele as nossas expressões de dores e alegrias, debilitar o nosso corpo, entretanto, não é capaz de nos tirar a juventude da alma, a esperança do coração, o prazer de viver, a firmeza do pensamento, o entusiasmo de nos apaixonarmos, a emoção de amar, enquanto nos achegamos à eternidade.





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